Em recente declaração, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, fez uma comparação controversa entre a atual proposta do Congresso para limitar os poderes dos ministros do STF e o contexto da Constituição de 1937, promulgada durante o Estado Novo de Getúlio Vargas.
Na visão de Mendes, a tentativa dos congressistas de estabelecer mecanismos de controle sobre o STF representaria uma ameaça aos princípios democráticos, análoga à suspensão de decisões do Judiciário imposta por Vargas. Contudo, essa comparação provocou reações que a qualificaram como uma leitura distorcida e incongruente dos papéis dos Poderes na República atual.
Em primeiro lugar, é importante entender a diferença entre os contextos históricos. A Constituição de 1937 foi criada em um momento de rompimento completo com os princípios democráticos: Vargas, que já era presidente desde 1930, usou o pretexto de uma “ameaça comunista” para dissolver o Congresso, cassar decisões judiciais e governar como ditador.
Essa estrutura de poder centralizado possibilitou abusos, retirou direitos e criou um ambiente de censura. Diferentemente, a atual tentativa do Congresso de limitar as decisões do STF ocorre dentro do contexto de uma democracia, onde deputados e senadores são eleitos pelo povo e possuem o direito – e dever – de fiscalizar os demais Poderes.
O Supremo, historicamente, desempenha a função de guardião da Constituição, mas quando suas decisões são interpretadas como ultrapassando os limites constitucionais, abre-se um debate legítimo sobre o equilíbrio de poder. Na Constituição de 1988, o Congresso é mandatado para criar leis, o Executivo para implementá-las, e o Judiciário para interpretá-las, mas isso não impede o Legislativo de agir em situações onde ele entenda que o Judiciário extrapolou suas funções.
Não se trata de um autoritarismo ao estilo do Estado Novo, mas sim de uma tentativa de preservar a harmonia entre os Poderes, e, principalmente, de garantir que o STF, ao decidir sobre temas sensíveis, não se sobreponha à soberania popular representada no Parlamento.
Gilmar Mendes é conhecido por seu papel vocal em defesa da independência do Judiciário, mas a comparação com 1937 suscita questionamentos sobre até que ponto a Corte pode interpretar sua autonomia como algo intocável. Ao contrário do governo Vargas, o Congresso atual reflete a vontade popular, pois seus integrantes são eleitos por meio de sufrágio direto.
A democracia não pode se sustentar sem uma interação respeitosa entre os Poderes, mas também não pode permitir que um deles ultrapasse a linha de sua função originária. Para muitos, Mendes pareceu se exaltar com o controle democrático do STF, algo que não implica em golpe ou subversão do Judiciário.
Essa declaração traz à tona a discussão sobre o ativismo judicial e o papel do Supremo em uma democracia. Nas últimas décadas, o STF tem assumido posições que, para alguns críticos, o colocam em um pedestal de decisões políticas, sobretudo quando trata de temas que nem sempre têm base constitucional clara.
Esse protagonismo divide opiniões: há quem defenda a atuação mais ativa do Judiciário em questões sociais e políticas, enquanto outros interpretam essas ações como interferências em prerrogativas dos legisladores, eleitos diretamente pelo povo.
Portanto, a reflexão sobre os limites dos Poderes na República é legítima, desde que baseada no equilíbrio e na garantia de que todos os cidadãos estejam representados de maneira justa. O Parlamento brasileiro possui o direito constitucional de buscar uma forma de impedir que o Supremo se desvie de suas funções originais, mas isso deve ser feito com cuidado e respeito à democracia.
As vozes que criticam a fala de Gilmar Mendes sublinham que a comparação feita foi desproporcional, pois Vargas suspendeu a democracia; já o Congresso, eleito para representá-la, não quer, mas, sim, dialogar sobre a melhor forma de preservar um Judiciário forte, justo e, sobretudo, respeitoso às balizas da Constituição.
A fala de Mendes revela tensões que precisam ser encaradas com seriedade, mas também com responsabilidade. Em uma democracia, cada Poder precisa ser forte, mas todos devem lembrar que sua força deriva de uma atuação conjunta e equilibrada, e que, em última análise, deve beneficiar aqueles que legitimamente representam: o povo brasileiro.
Perques Leonel Batista, jornalista, especialista em política e análise de discursos políticos.